Os novos polos de poder 3715r

Opinião
Guaíra, 7 de maio de 2020 - 00h00

 

As crises não se esgotam em tempo marcado. Constituem um fenômeno que pera a linha do tempo. Como a água corrente, que descobre as entrâncias e reentrâncias das rochas até encontrar o mar, as crises fluem ao correr das circunstâncias, gerando efeitos maiores ou menores, abrindo rumos, redefinindo caminhos. A crise sanitária, provocada pela pandemia do Covid-19, impulsionará a ação dos governos na trilha da saúde. A crise econômica provocará sequelas sobre os conjuntos sociais, abaixando o índice do Produto Nacional Bruto da Felicidade. Servirá de alerta. E a crise política já começa a deixar nossos representantes de “barba no molho”.

Se há uma consequência que soma os componentes das três crises em curso, esta é o avanço da participação social no processo político. Saturada de promessas não cumpridas, indignada com a má qualidade dos serviços públicos, descrente com as figuras que, periodicamente, aparecem no cenário como “salvadores da Pátria”, a sociedade dá um o adiante no sentido de criticar, exigir, cobrar, querer mudar. Quer dizer, decide participar com mais força do sistema de decisões.

Em alguns países, principalmente na Europa, este direcionamento é bem desenvolvido, ganhando a designação de “auto-gestão” técnica, pela qual as pessoas escolhem seus objetivos e os meios para alcançá-los, não aceitando mais a tutela dos políticos. O sentimento é de que a água transbordou no copo. Tal tendência exibe maior organicidade social. Grupos, núcleos, setores, desencantados com os obsoletos e tradicionais padrões de operar a política, querem, eles mesmos, definir suas ações. A taxa de cidadania ganha força.

Aliás, a crítica que se faz à democracia representativa já vem de décadas. Bobbio, em seu clássico O Futuro da Democracia, descreve as promessas não cumpridas por ela, entre as quais, a educação para a cidadania, o combate ao poder invisível, as oligarquias, a falta de transparência dos governos, o o de todos à justiça. Estes fenômenos se somam a outros, convergindo para o distanciamento entre sociedade e representação política.

Como podemos dar outra interpretação a esse novo estado? Significa que a sociedade se organiza em entidades de referência, como sindicatos, associações, federações, grupos e movimentos. Esses são os novos núcleos de poder. Uma força que nasce nas margens, ensejando o que podemos chamar de “poder centrípeto”, em contraposição ao “poder centrífugo”, este formado pelas instituições centrais, os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, nas instâncias federais, estaduais e municipais.

Essa modelagem a a agir como um rolo compressor sobre os Poderes constitucionais. Assim raciocina o eleitor: se meu representante ou o governante não conseguem atender as necessidades, vou bater na porta de minha entidade. Sob tal configuração, desenvolver-se-á a ação da política no Brasil, com alteração de comportamentos, mudança na feição dos protagonistas, redefinição dos pacotes sociais, redimensionamento dos recursos, reordenamento de meios e compensações para os programas regionais, etc.

Os novos horizontes, sob tal panorama, são promissores. A democracia participativa finca estacas profundas na seara social. O que vai reforçar os três instrumentos que, hoje, a ancoram: o referendo, o plebiscito e o projeto de lei de iniciativa popular. Redesenha-se, assim, uma paisagem mais fértil no campo democrático, corroborando um dos significados da expressão japonesa para a palavra crise: oportunidade. Ou seja, vamos extrair das crises a oportunidade para o país refazer o seu modus faciendi de operar a política.

Pano de fundo: o Brasil é um país de dimensão continental, com imensas riquezas naturais, não registra as catástrofes naturais que ocorrem em diversas regiões do mundo, abriga o maior e mais qualificado agronegócio do planeta, tem sol o ano inteiro na região Nordeste e um dos maiores potenciais turísticos do mundo. O que falta, por aqui, é uma taxa menor do que podemos chamar de Produto Nacional Bruto da Corrupção (PNBC).

Há outros componentes que devem entrar no jogo. A política não é selva para praticar tiro ao alvo contra animais. As disputas precisam entrar no foro do respeito e da seriedade. Os compromissos hão de ser executados. Urge deixar de lado as promessas mirabolantes, as emboscadas, a radicalização, o ódio, o terraplanismo, os ideários ultraados. O lema a guiar nossos os: cada um cumpra o seu dever.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação Twitter@gaudtorquato


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Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação

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